Herdeira da Beleza - Por Tássio Santos

A Descaracterização do Axé e a Bahia Branca de Segundo Sol

Você deve ter acompanhado os debates nas redes sociais sobre o elenco escolhido para representar a Bahia na nova novela das nove, Segundo Sol: só artistas brancos nos papéis principais. Mas outra questão igualmente incômoda é a pasteurização do Axé Music, contratando  artistas de outros ritmos para regravar canções da música baiana. Ou você não reparou nisso?

Acompanhei nas redes sociais os debates em torno de ‘Segundo Sol’, nova produção da Rede Globo de Televisão para o horário das nove horas na sua grade de novelas. Assim como muitos de vocês, também recebi com estranheza a notícia de que a trama apresentaria uma Bahia extremamente Branca. Rodada em Salvador e num povoado no Baixo Sul da Bahia, a história gira em torno da falsa morte de um decadente cantor de axé, Beto Falcão, e da sua relação de amor com a mocinha da trama, a marisqueira Luzia.

Num primeiro momento, foi a escalação do elenco que me deixou incomodado. Os principais rostos divulgados pela Globo eram de pessoas brancas. Se antes da novela estrear já havia certa percepção de que a Bahia de João Emmanuel Carneiro não correspondia com a Bahia da vida real, o primeiro capítulo da trama confirmou isso ao mostrar uma Salvador completamente branca, que não se resume apenas a escalação dos atores, indo também à pasteurização do Axé Music – o outro ponto que me deixou profundamente incomodado.

Até a finalização do primeiro capítulo nenhum personagem negro relevante havia sido apresentado. Da mesma forma, no site da novela, há apenas três atores negros confirmados na trama: Fabricio Boliveira, Danilo Ferreira e Roberta Rodrigues. Junto a eles, a baiana Claudia Di Moura também participa da trama, como uma empregada doméstica de uma família rica, porém não tem seu nome na lista oficial de personagens, divulgada no site do Gshow. A participação de pessoas negras resumiu-se a figuração e personagens sem muito destaque, o que resultou para a emissora uma notificação do Ministério Público do Trabalho, que entendeu que não há igualdade racial na produção.

De forma geral, já é bastante problemático que a televisão continue constituindo cotas para pessoas negras. Tanto no jornalismo quanto na teledramaturgia, a população negra é sempre sub-representada, e quando não o é, cria-se uma exclusividade para a história, como aconteceu em “Da Cor do Pecado”, também de João Emmanuel Carneiro, “Viver a Vida” com a “primeira Helena negra” de Manoel Carlos, e a novela teen Malhação, que somente em 2016 teve como protagonista uma atriz negra. Em todos esses casos, quando as personagens não exerciam papeis subalternos, eram subalternizadas em algum momento da trama. No caso de Segundo Sol, que especificamente se passa na Bahia, na cidade de Salvador, beira o absurdo que as histórias girem em torno de pessoas brancas, quando, respectivamente, o estado e a cidade possuem cerca de 80% de sua população autodeclarada negra.

Se a baixa escalação de atores negros e a não construção de tramas importantes que envolvam pessoas negras em Segundo Sol manifesta (mais uma vez) o racismo presente na construção da produção, a divulgação da trilha sonora mostra que descaracterizaram até mesmo o Axé Music, gênero musical que tem suas origens no povo negro da Bahia.

Beto Falcão ( Emilio Dantas )

As principais canções da trama foram regravadas em versões completamente desconexas com a música baiana, com cantores que não tem a mínima relação com gênero: Wesley Safadão canta “Vem Meu Amor”, Thiaguinho canta “Beleza Rara”, Maria Gadú canta “Baianidade Nagô”, Jhonny Hooker canta “Beija Flor”, Simone e Simaria cantam “Mal Acostumado” e AnaVitória cantam “Me Abraça”. Entre os baianos, ou expoentes da música baiana, destacam-se apenas pessoas brancas: “Quixabeira” da Banda Cheiro de Amor, “Milla” de Netinho, “Um canto de Afoxé” com Caetano e os filhos, e “O canto da Cidade” com Daniella Mercury. Há ainda a versão de “O mais belo dos belos” cantada por Alcione, e Faraó de Margareth Menezes – única baiana negra escalada.

Para quem, assim como eu, cresceu ouvindo essas músicas e que, mesmo não sendo natural de Salvador, construiu uma memória afetiva com as canções que marcam o Axé Music, é bastante estranho ver “Vem Meu Amor” virar uma versão de forró, “Mal Acostumado” uma música sertaneja, “Beleza Rara” um pagode carioca, e “Suingue da Cor” uma música eletrônica cantada em inglês.

A Globo mais uma vez apostou na invisibilização de pessoas negras, tanto para compor o seu casting de atores, quanto na escolha da trilha sonora. Sabemos que isso não é uma característica exclusiva de Segundo Sol, nas produções atuais e recentes, a participação de pessoas negras também é mínima e sempre reduzida a papeis subalternizados. Entretanto, em Segundo Sol isso se torna ainda mais visível por que a proposta da trama é contar a história de personagens que, caso existissem, muito provavelmente não seriam pessoas brancas.

Penso que se houve uma grande inspiração para João Emmanuel Carneiro, autor da trama, essa deve ter vindo de Daniella Mercury, que desde a década de 90 entoa pelos quatro cantos do Brasil que a cor e o canto da cidade de Salvador são dela. Nesse aspecto, Segundo Sol pode até não divergir muito do movimento atual do Axé Music, que assim como mostra a novela, foi incorporado e tem como principais expoentes pessoas brancas.

Mas, e aí, você conhece a Bahia? Curte Axé Music? O que acha dessa produção? Fiquei bastante curioso para saber o que telespectadores de outras partes do país estão achando…

A partir dessa semana estarei escrevendo aqui no Herdeira da Beleza sobre questões de gênero, sexualidade, raça, classe e lgbtfobia, especialmente em situações que me inquietam. Eu sou Doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares Sobre Gênero, Mulheres e Feminismo e deixarei bem demarcado o meu lugar de homem, cisgênero, branco, gay e no caso específico desse texto, baiano.

Podemos continuar esse debate por aqui ou pelo Twitter e Instagram, é só seguir @elder_dell. Vou adorar receber sugestões de pautas também. Nos vemos próxima terça!

2 thoughts on “A Descaracterização do Axé e a Bahia Branca de Segundo Sol

  1. Parei de assistir novelas a muito tempo, mas foi impossível ficar indiferente a todos os comentários a respeito de Segundo Sol. É triste ver que ainda hj, o negro só apareça pra preencher cotas em produções como essa. Já não reconheço o Brasil mostrado pelas novelas a muito tempo. Segundo sol só vem confirmar a não representatividade do povo brasileiro. Parabéns pelo artigo.

  2. Oie!!
    Adorei o artigo.tb fiquei incomodada com elenco da novela. Estranhei muito. Bjs!! Espero q seja o primeiro de muitos artigos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *